Wednesday, March 30, 2016

Patrimônio

Aos amigos que passam por Bruxelas, costumo oferecer os imperdíveis tours em Bruges e Gante. Já perdi a conta dos dias passados nestas cidades, mas afirmo que vou sempre com imenso prazer. O passeio em ambas as cidades é adaptável “ao gosto do freguês”: Com ou sem barco, com ou sem entrada em museus, com ou sem as “obras-primas”.

Alguns brasileiros chegam aqui com a memória do filme Os Caçadores de Obras-Primas (2014), que destaca justamente duas notáveis obras de arte em exibição nessas cidades. Vale conferir  a Madonna de Bruges (Michelangelo) e o Retábulo de Ghent  (Jan van Eyck) para entender porque os nazistas tanto fizeram para roubá-las.

O filme não é nenhum clássico, mas levanta uma questão interessante. Até que ponto colocamos vidas em risco para salvar um patrimônio cultural? Como arbitrar entre pinturas, esculturas ou edifícios e vidas humanas? A resposta não é simples.

Com a reconquista de Palmira pelas tropas de Assad, fala-se num esforço mundial para se reconstruir o que foi um grande patrimônio da humanidade. Há muitos meses que penso em Palmira. Só não escrevi antes em respeito às centenas de milhares de vítimas da Guerra da Síria.

Colocamos alguns bilhões para restaurar os danos causados pelo Exército Islâmico às ruinas de Palmira ou resolvemos os problemas dos refugiados? Como arbitrar?

Palmira foi condenada há muito tempo. Se os Assad não fossem ditadores sanguinários, poderiam ter feito desse incomparável sítio arqueológico uma “mina de ouro”. A renda seria suficiente para garantir a sua preservação, prosseguir nas escavações e ainda sobraria um troco para a família. Assad, pai e filho, no entanto, preferiram ver estrangeiros fora do seu país.

O Exército Islâmico destroçou Palmira e saqueou os tesouros do Iraque. O Taliban destruiu os Budas gigantes do Afeganistão. A Al-Qaida arrasou Tombuctu. O terrorismo islâmico não é brincadeira, destrói o passado e aterroriza o presente para que não haja futuro.



Foto: Nas férias do verão passado, à caminho da Bretanha, pit-stop às margens do Sena.

Monday, March 28, 2016

Dessa vez, foi perto

Depois de alguns bons dias sem escrever, estou de volta, diante do computador e de um monte de jornais acumulados na útima semana. Não poderia deixar de escrever sobre os eventos trágicos ocorridos aqui mesmo em Bruxelas. 

Assustou. A estação de metrô de Maelbeek fica a 2km de casa. O aeroporto é, sem dúvidas, um ponto de passagem obrigatório na nossa vida profissional.

Os amigos brasileiros, concentrados na nossa crise interna, provavelmente não perceberam os momentos que antecederam os atentados. Vou relembrá-los.

Na sexta-feira, 18 de março, enquanto o governo brasileiro pagava para que manifestantes fossem às ruas em seu apoio, a Bélgica anunciava a prisão de Salah Abdeslam, o cabeça dos atentados de Paris.

Anúncio com pompa e circunstância, presença de vários líderes europeus e recadinho de Obama. Show! Como disse o jornal belga Le Soir, a Bélgica salvava a sua honra.

A captura de Abdeslam foi o resultado de uma série de investidas da polícia a partir de novembro, resultando na prisão ou morte de vários dos seus cúmplices. Muitos cúmplices. A cada semana, o Le Soir atualiza o “organograma” da gangue de terroristas islâmicos do eixo Paris-Bruxelas. Não para de aumentar.

Reconheço todo o esforço e determinação da polícia belga e dos serviços de inteligência europeus. Porém, encontrar o inimigo público número um dentro de Bruxelas, tão próximo de sua própria moradia, mostra que tem algo de podre no Reino da Bélgica.

É por isso que a alegria tenha durado tão pouco, apenas 4 dias. Como os poucos sobreviventes da gangue cometeram atentados suicidas, acredita-se que não haja risco iminente de outros trágicos eventos. Talvez não nos próximos dias.

Os colegas e amigos belgas e franceses entendem que a vida não será mais a mesma. Os procedimentos de segurança chegaram para ficar. Acabou aquela praticidade de se chegar no trem a 5 minutos do embarque ou passar de um país para o outro sem qualquer controle.

As pessoas querem um Estado mais atento e vigilante. A discussão importante é sobre os limites dessa vigilância, tema que já inspirou vários posts deste blog.

Depois do choque e da dor, a Bélgica voltou para onde estava antes do dia 18. Caçando as suas bruxas, encontrando os culpados pelo policiamento frouxo e pelos erros de inteligência.

Se o terrorismo tem seus fundamentos na pobreza ou na desigualdade social, existe um fator manipulatório que transforma esse contingente de marginais em brutais criminosos. Os governos europeus têm que trabalhar em ambos os aspectos para erradicar esse mal.



Foto: Abadia de Mortemer, na Normandia. Cinco séculos separam as duas partes do conjunto.

Saturday, March 12, 2016

Pelas ruas

Plano de sábado: Ir ao centro de Bruxelas comer um “bar en croûte de sel”, passear por um pouco por lá e, na volta, entrar no cinema para assisitir “Spotlight”. Tudo isso sem carro.

Passar o sabadão sem carro é a minha vingança. Durante a semana, para sair de onde eu moro, uma densa região comercial e residencial, cruzo inúmeras faixas de pedestre. A maioria delas não tem sinal, ou seja, o pedestre tem prioridade total.

Considerando-se a multidão que anda pelas ruas do bairro, algumas delas são difíceis de atravessar. Nos horários de pico, é muito irritante.

Por isso, hoje, fiz questão de atravessá-las lentamente, com direito a paradinha no meio da faixa para ver se não deixei cair nada pelo caminho. Considero-me vingado.



A  200m do cinema, percebi uma movimentação diferente. Havia muitos policiais e a multidão protestava contra alguém. De longe, não entendia direito. Notei que terminava com “LA”. O meu subconsciente preparava-se para uma prévia das manifestações de domingo (13 de março).

Chegando mais perto, percebi que o vilão era outro. Tratava-se de Joseph Kabila, o “dono” do Congo, antiga colônia belga, ao qual os manifestantes referiam-se como assassino e corrupto.

O grupo prosseguiu pelas ruas do Matonge (bairro congolês de Bruxelas, pronuncia-se Matonguê) e eu fui ao cinema.  Não aderi à manifestação do #ForaKabila, mas espero que todos os amigos do Brasil estejam presentes nas nossas ruas, pedindo um #ForaDilma e #ForaPT.




Foto: Abadia de Mortemer, na Normandia. O conjunto do século XVII está bem preservado, enquanto que os prédios originais do século XII foram destruídos.

Friday, March 4, 2016

Encontros

Meus leitores do Brasil ainda estão comemorando o encontro de um ex-político com o japonês da Federal. Nessas horas, é difícil falar de outra coisa, mas vou arriscar.

Começo de ano tem festa do cinema em vários países, fechando com o Oscar. Aqui na Bélgica, o vencedor do “Magritte du Cinéma”, como melhor filme do ano, foi “O Novíssimo Testamento”.

O filme começa assim: Deus existe e mora em Bruxelas. Entre os destaques, a atuação do astro belga, Benoît Poelvoorde. O filme tem momentos inspiradores intercalados com o pastelão típico do ator, que faz o papel de Deus. Sem spoilers, pois o filme está em cartaz em São Paulo.

Para os amigos do Brasil, vale relembrar quem é o ator tão conhecido no mundo francofônico. Em “Asterix nos Jogos Olímpicos”, foi Brutus. Em “Coco antes de Chanel”, foi  o amante e protetor da futura estilista. Clíque aqui, caso essas dicas não sejam suficientes.

Assisti ao filme “O Novíssimo Testamento” no avião, voltando do Brasil para a Europa. Como minha esposa dormiu no vôo, o filme foi nosso assunto nos dias seguintes, quando contava a história em pedacinhos.

Num desses dias, recebemos um casal de amigos para jantar. Tocaram o interfone. De dentro de casa, destravei a primeira e a segunda porta. Mesmo conhecendo o caminho até nosso apartamento, o casal estava demorando demais. Destravei as portas mais uma vez e nada. Resolvi descer para ver o que acontecia.

Lá embaixo, nossos amigos não conseguiam passar pela segunda porta. Um outro casal havia espalhado um monte de malas e bloqueado a segunda porta. Tinham um cachorro também. Nossos amigos educadamente esperavam.

Chamou-me atenção o jeito estabanado do homem que procurava a chave da porta entre as malas e pacotes. Era de uma graça familiar. Observei melhor e reconheci a figura.

Sim, era ele. Deus em pessoa. Fiquei impressionado. Por um momento, esqueci-me completamente do casal de amigos.

Deus existe, mora em Bruxelas e é meu vizinho.


Foto: Última foto na bela Lyons-la-Forêt.