Tuesday, October 20, 2020

Uma tarde em Shanghai


Esta é uma história do tempo em que a gente cruzava o planeta por causa de uma ou duas reuniões. Tudo aconteceu em Shanghai, onde eu encerrava uma missão na Ásia. O Jerry era um executivo local, subordinado a várias pessoas baseadas na Europa, entre elas, eu mesmo. Era o auge das organizações matriciais.

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Naquela quinta-feira, tínhamos algumas reuniões entre o escritório e o hotel. Felizmente, a agenda permitia um intervalo razoável para o almoço. Enquanto a agenda do Jerry estava mais tranquila, eu tinha outros compromissos ao final da tarde, embarcando de volta para a França à noite.

Ainda pela manhã, Jerry perguntou: “Está livre para o almoço?”. Com o meu aceno positivo, ele logo emendou: “Vou te levar para um lugar super especial, um dos melhores de Shanghai, onde você vai comer uma fantástica iguaria”.

Jerry era sempre gentil. Com aquele convite, já estava salivando. Afinal, sempre comi muito bem na Ásia. Antecipava um almoço memorável.

Bateu meio-dia e a reunião acabou. Jerry conduziu-me para o tão esperado restaurante. Vale dizer que, à época, a China passava por uma crise sanitária, um dos surtos de gripe aviária. O impacto disso foi quase imperceptível nas diversas viagens que fiz para lá. Jamais comia aves.

Chegando ao restaurante, distante do centro de Shanghai, tive uma leve decepção. O local era de fato excepcional, mas seria a minha terceira vez por lá. Costumávamos usar aquele estabelecimento para receber visitas ilustres. Tudo bem, ele não era obrigado a saber.

O Jerry comportou-se como bom anfitrião e, conforme sugerido, escolheu os pratos. Estava despreocupado com a sua escolha e ansioso pela fantástica iguaria. Ele conversou em mandarim com os funcionários da casa e nem fiz questão de entendê-los.

Os pratos chegaram. Era o grande momento. Jerry não escondia a excitação. Eu tentava descobrir o que havia nas travessas cuidadosamente escolhidas pelo colega, o que nem sempre é óbvio.

Com todo seu conhecimento e sagacidade, o caríssimo Jerry escolheu frango como prato principal em plena crise de gripe aviária. Pior do que isso, o frango não estava grelhado nem bem cozido, estava muito mal passado. Tinha até o ‘sanguinho’. Senti nojo.

Sou um péssimo ator e, quando sinto algo assim, mal consigo disfarçar. Jerry perguntou: “Então, que tal?” Nesse momento, cortei uma fatia microscópica do frango e coloquei na boca. Ensaiei um: “Hmmm, muito bom!” Com certeza não fui convincente.

A essa altura, estava louco para que o Jerry pedisse licença para ir ao toilette. Assim, jogaria o frango asqueroso no vaso de plantas, no aquário ou debaixo da mesa. Jerry não deu chance. Enquanto eu almocei os acompanhamentos, Jerry devorou a travessa de frango.

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Depois do almoço, fomos ao Bund, tradicional área de Shanghai. Falei para o Jerry que tomaríamos um café e voltaríamos para o hotel. Apertava um pouco a nossa agenda, mas valia à pena rever um dos locais mais celebrados da cidade. Aliás, eu preferia mesmo é ter almoçado por lá.

Era praticamente hora de voltar para o hotel, quando eu e o Jerry fomos abordados por duas senhoritas daquela profissão antiga. Ao invés de ignorá-las, Jerry engatou uma conversa em mandarim. Impaciente, disse ao Jerry: “Hoje é quinta-feira, estamos só no começo da tarde e ainda temos compromissos”. Acho que fui bem claro.

A manhã tinha sido ensolarada em Shanghai e, naquele princípio de tarde, o tempo fechava. Como fazem inúmeras mulheres por lá, as duas senhoritas usavam sombrinhas para proteger a tez e manter a pele mais clara. Àquela hora, as sobrinhas estavam fechadas.

Quando as moças perceberam o teor da minha sutil reprimenda ao Jerry, as sombrinhas ganharam uma outra função: viraram armas. Elas partiram para cima de mim usando as sombrinhas como espadas e gritando: seu chato, estraga-prazer, chefe de merda! Pois é, tive que sair correndo pelas ruas de Shanghai perseguido por duas putas tresloucadas.

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Jerry é uma pessoa boníssima, talvez meio trapalhão. Fico tranquilo em compartilhar este relato. Mesmo que seja lido pelo Jerry, ele ficará quieto. Jerry foi demitido semanas depois dessa quinta-feira (não tenho nada a ver com isso). A sua passagem na empresa foi tão desastrosa que é omitida no seu perfil LinkedIn. Há pouco tempo, entrei em contato com ele. Perguntei se estava tudo bem e desejei-lhe ‘all the best’.

 


Foto: A Porta Nigra, construção romana do século III, um dos marcos de Tréveris, na Alemanha. Foto de maio de 2016.

 

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