Esta é uma história do tempo em que a gente cruzava o planeta por causa de uma ou duas reuniões. Tudo aconteceu em Shanghai, onde eu encerrava uma missão na Ásia. O Jerry era um executivo local, subordinado a várias pessoas baseadas na Europa, entre elas, eu mesmo. Era o auge das organizações matriciais.
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Naquela quinta-feira, tínhamos algumas reuniões entre o
escritório e o hotel. Felizmente, a agenda permitia um intervalo razoável para
o almoço. Enquanto a agenda do Jerry estava mais tranquila, eu tinha outros
compromissos ao final da tarde, embarcando de volta para a França à noite.
Ainda pela manhã, Jerry perguntou: “Está livre para o almoço?”.
Com o meu aceno positivo, ele logo emendou: “Vou te levar para um lugar super
especial, um dos melhores de Shanghai, onde você vai comer uma fantástica
iguaria”.
Jerry era sempre gentil. Com aquele convite, já estava
salivando. Afinal, sempre comi muito bem na Ásia. Antecipava um almoço
memorável.
Bateu meio-dia e a reunião acabou. Jerry conduziu-me para o
tão esperado restaurante. Vale dizer que, à época, a China passava por uma
crise sanitária, um dos surtos de gripe aviária. O impacto disso foi quase
imperceptível nas diversas viagens que fiz para lá. Jamais comia aves.
Chegando ao restaurante, distante do centro de Shanghai,
tive uma leve decepção. O local era de fato excepcional, mas seria a minha
terceira vez por lá. Costumávamos usar aquele estabelecimento para receber visitas
ilustres. Tudo bem, ele não era obrigado a saber.
O Jerry comportou-se como bom anfitrião e, conforme sugerido,
escolheu os pratos. Estava despreocupado com a sua escolha e ansioso pela
fantástica iguaria. Ele conversou em mandarim com os funcionários da casa e nem
fiz questão de entendê-los.
Os pratos chegaram. Era o grande momento. Jerry não escondia
a excitação. Eu tentava descobrir o que havia nas travessas cuidadosamente
escolhidas pelo colega, o que nem sempre é óbvio.
Com todo seu conhecimento e sagacidade, o caríssimo Jerry
escolheu frango como prato principal em plena crise de gripe aviária. Pior do
que isso, o frango não estava grelhado nem bem cozido, estava muito mal passado.
Tinha até o ‘sanguinho’. Senti nojo.
Sou um péssimo ator e, quando sinto algo assim, mal consigo disfarçar.
Jerry perguntou: “Então, que tal?” Nesse momento, cortei uma fatia microscópica
do frango e coloquei na boca. Ensaiei um: “Hmmm, muito bom!” Com certeza não fui
convincente.
A essa altura, estava louco para que o Jerry pedisse licença
para ir ao toilette. Assim, jogaria o frango asqueroso no vaso de plantas, no
aquário ou debaixo da mesa. Jerry não deu chance. Enquanto eu almocei os
acompanhamentos, Jerry devorou a travessa de frango.
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Depois do almoço, fomos ao Bund, tradicional área de
Shanghai. Falei para o Jerry que tomaríamos um café e voltaríamos para o hotel.
Apertava um pouco a nossa agenda, mas valia à pena rever um dos locais mais celebrados
da cidade. Aliás, eu preferia mesmo é ter almoçado por lá.
Era praticamente hora de voltar para o hotel, quando eu e o
Jerry fomos abordados por duas senhoritas daquela profissão antiga. Ao invés de
ignorá-las, Jerry engatou uma conversa em mandarim. Impaciente, disse ao Jerry:
“Hoje é quinta-feira, estamos só no começo da tarde e ainda temos compromissos”.
Acho que fui bem claro.
A manhã tinha sido ensolarada em Shanghai e, naquele
princípio de tarde, o tempo fechava. Como fazem inúmeras mulheres por lá, as
duas senhoritas usavam sombrinhas para proteger a tez e manter a pele mais
clara. Àquela hora, as sobrinhas estavam fechadas.
Quando as moças perceberam o teor da minha sutil reprimenda ao
Jerry, as sombrinhas ganharam uma outra função: viraram armas. Elas partiram
para cima de mim usando as sombrinhas como espadas e gritando: seu chato,
estraga-prazer, chefe de merda! Pois é, tive que sair correndo pelas ruas de
Shanghai perseguido por duas putas tresloucadas.
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Jerry é uma pessoa boníssima, talvez meio trapalhão. Fico
tranquilo em compartilhar este relato. Mesmo que seja lido pelo Jerry, ele ficará
quieto. Jerry foi demitido semanas depois dessa quinta-feira (não tenho nada a
ver com isso). A sua passagem na empresa foi tão desastrosa que é omitida no
seu perfil LinkedIn. Há pouco tempo, entrei em contato com ele. Perguntei se
estava tudo bem e desejei-lhe ‘all the best’.
Foto: A Porta Nigra, construção romana do século III, um dos
marcos de Tréveris, na Alemanha. Foto de maio de 2016.
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