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Monday, August 4, 2025

Os podcasts que ninguém pediu, mas que você deveria ouvir



Muitos de vocês notaram meus experimentos com podcasts feitos por inteligência artificial nos últimos dois meses. E, honestamente, sei que a maioria viu, mas não chegou a ouvir. Tudo bem, eu entendo! É exatamente por isso que vou continuar "brincando" até criar algo realmente interessante e, por que não dizer, cativante.

Da série inicial Gotas de Transformação até o Bridge, houve uma evolução significativa. E é por isso que, até o fim do ano, pretendo substituir meus dois primeiros produtos: o Gotas de Transformação e o DeepCast. Inclusive, já criei uma versão em inglês do DeepCast — o The DeepCast, que está bem melhor — e em breve vou descontinuar a versão original em português. Já as minhas outras séries curtas — Um nó chamado Brasil, Pulsar, Pulse e Bridge — continuarão no ar como estão.

Agradeço imensamente aos poucos que me deram algum feedback. Muita gente ficou encantada por simplesmente entender que o conteúdo foi feito 100% por IA, mas o que eu realmente buscava era a sua opinião sobre o conteúdo em si. Queria saber se ele consegue transitar entre o superficial e o profundo, e se os temas são tão interessantes a ponto de fazer você querer ouvir o próximo episódio.

Para encaixar este projeto na minha agenda, estabeleci alguns princípios:

1. Usar apenas ferramentas simples e acessíveis, sem exigir conhecimento profissional ou aprofundado.

2. Garantir que a edição fosse fácil e rápida.

3. Fazer uma divulgação limitada.

É claro que, mesmo usando ferramentas simples, paguei as licenças de software devidas. Até hoje, foram 118 episódios publicados no Spotify.

A parte mais empolgante desse trabalho é o projeto como um todo — desde a busca pelo “prompt” ideal até a escolha dos elementos visuais, vinhetas e sons que enriquecem o podcast. Apesar de cada episódio exigir um trabalho manual e, muitas vezes, várias checagens, o ponto central é um serviço do Google que produz a maior parte do áudio — aqueles 80% do trabalho feitos com 20% do esforço. Chegar aos 100% é outra história.

A ferramenta NotebookLM funciona muito bem em inglês, mas a geração de áudio em português ainda tem suas limitações. Por isso, a produção de Um nó chamado Brasil foi um desafio!

Enfim, convido novamente todos a darem uma chance a esses projetos:

Em português:

Um nó chamado Brasil

Pulsar

DeepCast (em breve será removido)

Gotas de Transformação (uma nova edição será lançada a partir de setembro)

Em inglês:

Bridge

Pulse

The DeepCast (versão inglesa do DeepCast, muito mais profunda)


A sua opinião é fundamental para aprimorar ainda mais este trabalho.


Foto: Palácio Sanssouci, o antigo refúgio de verão de Frederico o Grande, ainda em Potsdam. Alemanha (abril de 2024).


Wednesday, July 23, 2025

PIX - A teta secou. Agora, vem a treta.



O governo norte-americano vai investigar se o PIX representa uma concorrência desleal para as empresas americanas de pagamentos. Será que eles têm razão?

A combinação da proliferação de bancos digitais com o PIX foi uma arma poderosa para resolver um problema brasileiro crônico: a desbancarização. Mais do que isso, resolveu com categoria — deu meios para que todos tivessem acesso aos serviços financeiros mínimos, permitindo realizar suas transações pessoais, seus bicos e os pequenos negócios da economia informal.

Ressalto isso porque é justamente o que eu esperaria de uma política pública: o governo não distribui peixes para todos, mas entrega anzóis e iscas em abundância.

A crítica poderia vir do argumento de que bancamos todas essas transações com o erário público. Mas a verdade é que o valor de dinheiro público investido na construção e manutenção do PIX é irrisório comparado com grandes projetos de tecnologia ou mesmo diante dos valores movimentados pelo Governo.

Antes do PIX, o caso de sucesso mais próximo foi o da Índia (2016), que enfrentou uma pobreza ainda mais severa e obteve resultados impressionantes: incluiu milhões no sistema financeiro, reduziu a informalidade; aumentou a arrecadação ao a evasão fiscal e estimulou o empreendedorismo informal. 

Enfim, mesmo eu — que não sou fã da mão pesada do Estado — reconheço: o PIX é infraestrutura. Mais do que isso, é um instrumento de inclusão muito mais eficiente e eficaz do que muitos outros benefícios sociais.

Resta aos incumbentes adaptarem a sua oferta. Há outras formas de oferecer serviços diferenciados. Tá com pena da Visa ou da Mastercard? A vida dos negócios é assim mesmo — especialmente em tempos de rupturas e transformações sucessivas.


Foto: Cecilienhof, local da famosa conferência de Potsdam, uma evento marcante do pós-guerra. Em Potsdam, Alemanha (abril de 2024).


Thursday, May 22, 2025

Espiões entre nós


 

Este post é inspirado em dois casos recentes que ilustram como funciona o mundo da espionagem. A analogia do iceberg não vale para esse universo, pois a pontinha visível é ainda muito menor. De vez em quando, a gente vê uma lasquinha e fica imaginando o tamanho e a sofisticação das redes de espionagem a serviço de países - seja para inteligência ou, mais comum nos dias de hoje, para criminalidade de Estado.

Quem não está acostumado com filmes e livros de espionagem até estranha, mas essas descobertas não surpreendem. Afinal, a arte imita a vida. Ou é o contrário?

A primeira descoberta foi a utilização do Brasil como base na formação de agentes russos. Os espiões fazem um estágio por aqui, onde constroem uma nova vida, que será amplamente rastreada com relacionamentos e documentos. Tudo isso é essencial para que, numa nova fase, o espião possa atuar em outro país com uma ficha “limpa” e cheia de vínculos comprováveis com o Brasil. Essa prática envolve anos de preparação e milhões em investimento para criar uma biografia perfeita - emprego, família, redes sociais, tudo cuidadosamente forjado.

Enquanto a Rússia segue a receita da KGB, investindo no longo prazo, a Coreia do Norte é mais direta. Como foi recentemente descoberto, desenvolveram uma máquina de infiltração de profissionais de TI em empresas ocidentais. Apesar dos currículos terrivelmente falsos, a onda de trabalho remoto pós-pandemia e o eterno déficit de profissionais de TI fizeram com que as empresas ocidentais baixassem a guarda e contratassem inúmeros espiões.

A TI tem acesso privilegiado a muitos dados e, quando não os tem, sabe o caminho para encontrá-los. O caminho para os norte-coreanos acessarem dados sensíveis não é muito longo. Daí em diante, é a mesma estratégia dos cibercriminosos: comercializar os dados, extorquir o proprietário das informações — ou ambos.

Quando se fala em espionagem, muitos ainda imaginam agentes com disfarces elaborados, gadgets mirabolantes e missões de tirar o fôlego. Mas a realidade, como sempre, mostra que o mundo das sombras é muito pragmático e, em certos aspectos, até mais inquietante do que qualquer roteiro cinematográfico.

Rússia e Coreia do Norte exploram vulnerabilidades gritantes. No Brasil, a facilidade de acesso a documentos legítimos é a brecha perfeita para quem precisa desaparecer de um país e surgir oficialmente em outro. No setor de tecnologia, a combinação de escassez de talentos e processos de recrutamento pouco rigorosos abre as portas para qualquer um que apresente um perfil convincente — mesmo que fabricado.

Enfim, são lembretes de que os espiões não estão apenas na tela de cinema ou atrás de celebridades e estadistas, mas podem ser seu colega de trabalho, seu vizinho, etc. Como escrevi recentemente no caso do INSS, onde houver uma fragilidade, haverá alguém para explorá-la. Portanto, é dever de todo cidadão e profissional encontrar e denunciar as pontas soltas do sistema.



Foto: Navegando pelas águas do Elba de Praga a Berlim (abril de 2024).

Tuesday, May 20, 2025

Gotas de transformação



Claro que também faço as minhas brincadeiras com IA generativa. Posso dizer tranquilamente que é "dever do ofício". A mais recente me consumiu algumas boas horas — e eu explico tudo neste post. Para quem quiser, conto o milagre e também o santo.

Tudo começou quando joguei o capítulo do livro que escrevi para a GoNew no Notebook LM, do Google. Fiquei impressionado com o resultado: um resumo bastante fiel do que eu havia escrito. Sim, existem pequenas falhas, mas até uma produção profissional está sujeita a imperfeições. Me empolguei ainda mais com a narração criada pela ferramenta, com dois locutores, e decidi criar algumas ilustrações para tornar o conteúdo mais acessível para um espectador ocasional - especialmente aqueles sem muita intimidade com tecnologia. O resultado está disponível no YouTube, aberto para todos.

A experiência me animou a ir além. Em vez de criar apenas um episódio, acabei produzindo um podcast inteiro sobre inovação e gestão, contando algumas das grandes histórias da inovação e das rivalidades entre novos entrantes e forças incumbentes.

Como fiz tudo sozinho, apanhei um pouco. Mas, depois de algum esforço - bastante prazeroso, por sinal - a primeira temporada deve ser concluída nos próximos dias, com o lançamento do 18º episódio. O podcast está disponível no Spotify e no YouTube.

Para realizar este projeto, usei:

  • ChatGPT (criação do texto base e checagem)
  • Notebook LM (diálogos e locução)
  • Canva (imagens)
  • CapCut (edição e montagem)

Aparentemente, não há erros factuais ou alucinações. Todo episódio tem um protagonista bem definido, cuja jornada pode, sim, ter sido um pouco romantizada - mas isso já estava no meu prompt, ou seja, na instrução que dei à IA para gerar o texto base.

Enfim, há muitas outras histórias para contar. Mudo o prompt para a segunda temporada?

 

Foto: Na Alemanha, seguindo o Rio Elba, passeio pelo Parque Nacional da Suíça Saxônica, em abril de 2024.

Wednesday, May 7, 2025

O que há numa cor?



Quando vi a discussão em torno da cor da camisa da seleção brasileira, pensei comigo: o mundo desabando, e estão preocupados com isso?

Para mim, o futebol deveria ser tratado com o mesmo rigor que o governo aplica a qualquer empresa: como um mero contribuinte. Sem favores, sem regimes especiais, sem pejotização. E se um jogo danificar qualquer bem público, que mandem a conta aos respectivos clubes. Nesse sentido, podem usar o uniforme que quiserem. A gente até torce, mas faço questão que todo jogador, clube e empresário paguem seus impostos como qualquer outro cidadão.

A conotação política das cores pouco me interessa. Perdi qualquer preconceito quando fui a um jogo do time de rúgbi parisiense — que joga de cor-de-rosa. Pensando no futebol apresentado ultimamente pela seleção, sugeriria o marrom. Ou, mais diretamente: cor de merda — como sugere a imagem logo abaixo.

O ponto mais interessante dessa polêmica é o prisma da CBF e da Nike. Percebendo que o contexto político atrapalha (e muito) a venda da tradicional "amarelinha", decidiram lançar um produto que agradasse ao outro lado. Assim, o par de camisas — amarela e vermelha — poderia voltar a mirar um mercado mais compatível com o tamanho do Brasil.

Do ponto de vista mercadológico, faz sentido. Mas esse movimento tem um preço. Mais do que isso, colocar lenha nessa fogueira pode gerar desgaste para a marca. Se eu fosse a Nike, não criaria a vermelha — tiraria a amarela.


Link para artigo do Guardian sobre o tema


Imagens: Foto de cima — seguindo a sequência iniciada no último post — é do centro de Meissen (Alemanha), cidade célebre pela produção de porcelana. A imagem abaixo foi gerada por IA pelo Gemini.



Monday, May 5, 2025

Assaltando os vovôs



Tem muita gente lacrando com a fraude no INSS? Tem muita gente tirando proveito político do fato? Claro. Tudo isso faz parte do sistema.

O que importa é que essa fraude bilionária chama atenção por vários aspectos fundamentais:

  1. A roubalheira não é exclusiva dos grandes contratos ou dos negócios travados pelos titãs estatais, como a Petrobrás. Roubar “só um pouquinho” de milhões de brasileiros dá o mesmo resultado. E deve haver muitas outras oportunidades por aí.

  2. A crueldade dos corruptos não tem limites. Desviar de aposentados que recebem muito pouco é um absurdo. As redes de corrupção não estão nem aí para suas vítimas.

  3. Quando o governo promete o reembolso imediato das vítimas, o escárnio se completa. Será que alguém ainda não entendeu que o dinheiro do governo é o nosso dinheiro?

Há, no entanto, uma ponta de positividade: apesar de todos os interesses contrários, a investigação avançou e expôs figuras bem próximas ao Planalto. Mais do que isso — ganhou destaque até da mídia geralmente alinhada ao governo. Parabéns aos envolvidos. Agora é essencial que a investigação seja exemplar: que revele todos os mecanismos utilizados, que liste todos os envolvidos — dentro e fora do INSS — e que se torne um caso de referência no combate à corrupção.

O INSS é uma organização tradicional, com a maioria dos seus servidores formada por profissionais honestos e dedicados. Conta ainda com o suporte técnico da renomada Dataprev. O Estado deve mover todos os esforços para reaver o dinheiro roubado, inclusive sequestrando todos os bens disponíveis dos envolvidos. Aí, sim, discutimos o que fazer com a diferença.

Mais importante ainda é que esse escândalo gere aprendizado institucional. Que não se trate apenas de punir os culpados, mas de fortalecer os controles, blindar processos digitais, e garantir auditorias contínuas. A confiança pública é frágil — e precisa ser restaurada com ação firme, transparente e duradoura.


Foto: Castelo de Moritzburg, Alemanha (2024). Passagem de uma viagem que fiz ao longo do Elba, dos arredores de Praga às proximidades de Berlim.

Tuesday, October 27, 2020

Rótulo



Aconteceu no Balthazar, um renomado restaurante francês do Soho, em Nova Iorque. A história tem quase duas décadas, mas só foi revelada por Keith McNally, proprietário do restaurante, há poucos dias através da sua conta no Instagram. 

Era uma daquelas noites de casa cheia, algo comum no local, uma brasserie recomendada pelo Guia Michelin. Entre as festejadas mesas, duas delas têm as suas histórias entrelaçadas pelo acaso.

Numa das mesas, um jantar a dois. Um jovem casal, que não precisa de motivo especial para celebrar, curtindo sua refeição acompanhada de um vinho. Os jovens escolheram o vinho mais em conta da casa, um Pinot Noir de US$ 18 (vide nota 1).

Na outra mesa, um grupo de executivos de Wall Street. Possivelmente, celebravam alguma transação importante. Para acompanhar o jantar, escolheram o vinho mais caro da carta, um Château Mouton Rothschild, cuja garrafa custava US$ 2000 (nota 1).

A essa altura, o leitor astuto já pode ter antecipado o que o acaso preparou para as nossas duas mesas. Sim, seus vinhos foram trocados!

Um serviço de vinho razoável nunca permitiria uma troca de garrafas. Todavia, os clientes das duas mesas solicitaram que suas garrafas passassem por decanters (nota 2). O restaurante utilizou dois decanters idênticos, que foram trocados à hora do serviço. Não me perguntem a razão de passar o Pinot Noir pelo decanter (nota 3).

Quando a equipe do restaurante percebeu o engano, chamaram o dono. Depois daquele frio na barriga, Keith preferiu abrir o jogo com seus clientes. Enquanto que os vinhos trocados já estavam sendo apreciados nas duas mesas, ele foi lá e contou o ocorrido. Cada mesa acabou ficando com o vinho que havia começado. Ambas pagaram apenas US$ 18 e o restaurante arcou com o prejuízo.

A proposta deste post não é homenagear o restaurante nem seu dono pela sábia decisão. Aliás, feito o estrago, é isso o que esperaria de qualquer estabelecimento. O ponto mais interessante é que nenhuma das mesas percebeu a troca. Bebiam felizes. O casal divertia-se fazendo valer ao máximo aquele vinho presumidamente barato. Os executivos transbordavam de alegria com o vinho presumidamente sofisticado.

Quando Keith esteve à mesa dos executivos, um deles elogiou a "pureza" do vinho. Disse que desconfiou que fosse um Mouton Rothschild. Cá entre nós, ele deve ter tentado alguma saída honrosa. Se ele entendesse um pouquinho de vinhos perceberia a brutal diferença, não é mesmo?

Esta pequena desventura enológica teria sido mera casualidade? Talvez não. Se transformássemos tal situação num experimento, tenho quase certeza que teríamos inúmeros resultados semelhantes. A dura verdade é que muitos clientes nem gostam do que bebem. É um ritual de celebração e exibição. Tem muita gente que bebe rótulo.

Há estudos análogos sobre o comportamento do consumidor de cervejas focados no Brasil. Ficou evidenciado que, em degustações às cegas, o bebedor comum não consegue diferenciar as diferentes marcas de cerveja. Pior ainda, à mesa, faz questão de exibir o rótulo da marca consumida, mudando a posição da garrafa ou lata para dar-lhe mais visibilidade, quando necessário.

Os amantes do vinho que conheci, na sua maioria europeus, escolhem as garrafas com base nas suas preferências históricas (uva, vinícola, safra, regiões, etc) e na oportunidade de conhecer melhor os produtos locais, sempre com uma relação interessante de custo/benefício. Arriscar uma nova experiência? Claro, mas só depois de uma boa conversa com o sommelier.


E você, bebe vinhos ou rótulos?

 

Leitura adicional:

Post sobre vinho de 2009 – Açúcar dá cana!

Post sobre vinho de 2009 – Vinum Nostrum

Notas:

(1)    Preços de vinte anos atrás. Hoje, a garrafa mais barata custa US$45, e a mais cara, US$6800.

(2)    O decanter tem várias funções: separar as impurezas, permitir a oxidação e servir o vinho. Vejam o excelente artigo da revista Adega.

(3)    Por que um Pinot Noir de US$18 precisaria passar por um decanter? Não sei. O dono do restaurante diz que quem manda é o cliente. O sommelier é instruído para concordar mostrando um certo desconforto. Nas palavras de Keith: “By acquiescing one educates the customer” 

Fontes:

Decanter, Instagram, “Small Data” de Martin Lidnstrom, Adega

 

Foto: Última foto em Tréveris, Alemanha. Detalhe na praça central da cidade.

Tuesday, October 20, 2020

Uma tarde em Shanghai


Esta é uma história do tempo em que a gente cruzava o planeta por causa de uma ou duas reuniões. Tudo aconteceu em Shanghai, onde eu encerrava uma missão na Ásia. O Jerry era um executivo local, subordinado a várias pessoas baseadas na Europa, entre elas, eu mesmo. Era o auge das organizações matriciais.

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Naquela quinta-feira, tínhamos algumas reuniões entre o escritório e o hotel. Felizmente, a agenda permitia um intervalo razoável para o almoço. Enquanto a agenda do Jerry estava mais tranquila, eu tinha outros compromissos ao final da tarde, embarcando de volta para a França à noite.

Ainda pela manhã, Jerry perguntou: “Está livre para o almoço?”. Com o meu aceno positivo, ele logo emendou: “Vou te levar para um lugar super especial, um dos melhores de Shanghai, onde você vai comer uma fantástica iguaria”.

Jerry era sempre gentil. Com aquele convite, já estava salivando. Afinal, sempre comi muito bem na Ásia. Antecipava um almoço memorável.

Bateu meio-dia e a reunião acabou. Jerry conduziu-me para o tão esperado restaurante. Vale dizer que, à época, a China passava por uma crise sanitária, um dos surtos de gripe aviária. O impacto disso foi quase imperceptível nas diversas viagens que fiz para lá. Jamais comia aves.

Chegando ao restaurante, distante do centro de Shanghai, tive uma leve decepção. O local era de fato excepcional, mas seria a minha terceira vez por lá. Costumávamos usar aquele estabelecimento para receber visitas ilustres. Tudo bem, ele não era obrigado a saber.

O Jerry comportou-se como bom anfitrião e, conforme sugerido, escolheu os pratos. Estava despreocupado com a sua escolha e ansioso pela fantástica iguaria. Ele conversou em mandarim com os funcionários da casa e nem fiz questão de entendê-los.

Os pratos chegaram. Era o grande momento. Jerry não escondia a excitação. Eu tentava descobrir o que havia nas travessas cuidadosamente escolhidas pelo colega, o que nem sempre é óbvio.

Com todo seu conhecimento e sagacidade, o caríssimo Jerry escolheu frango como prato principal em plena crise de gripe aviária. Pior do que isso, o frango não estava grelhado nem bem cozido, estava muito mal passado. Tinha até o ‘sanguinho’. Senti nojo.

Sou um péssimo ator e, quando sinto algo assim, mal consigo disfarçar. Jerry perguntou: “Então, que tal?” Nesse momento, cortei uma fatia microscópica do frango e coloquei na boca. Ensaiei um: “Hmmm, muito bom!” Com certeza não fui convincente.

A essa altura, estava louco para que o Jerry pedisse licença para ir ao toilette. Assim, jogaria o frango asqueroso no vaso de plantas, no aquário ou debaixo da mesa. Jerry não deu chance. Enquanto eu almocei os acompanhamentos, Jerry devorou a travessa de frango.

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Depois do almoço, fomos ao Bund, tradicional área de Shanghai. Falei para o Jerry que tomaríamos um café e voltaríamos para o hotel. Apertava um pouco a nossa agenda, mas valia à pena rever um dos locais mais celebrados da cidade. Aliás, eu preferia mesmo é ter almoçado por lá.

Era praticamente hora de voltar para o hotel, quando eu e o Jerry fomos abordados por duas senhoritas daquela profissão antiga. Ao invés de ignorá-las, Jerry engatou uma conversa em mandarim. Impaciente, disse ao Jerry: “Hoje é quinta-feira, estamos só no começo da tarde e ainda temos compromissos”. Acho que fui bem claro.

A manhã tinha sido ensolarada em Shanghai e, naquele princípio de tarde, o tempo fechava. Como fazem inúmeras mulheres por lá, as duas senhoritas usavam sombrinhas para proteger a tez e manter a pele mais clara. Àquela hora, as sobrinhas estavam fechadas.

Quando as moças perceberam o teor da minha sutil reprimenda ao Jerry, as sombrinhas ganharam uma outra função: viraram armas. Elas partiram para cima de mim usando as sombrinhas como espadas e gritando: seu chato, estraga-prazer, chefe de merda! Pois é, tive que sair correndo pelas ruas de Shanghai perseguido por duas putas tresloucadas.

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Jerry é uma pessoa boníssima, talvez meio trapalhão. Fico tranquilo em compartilhar este relato. Mesmo que seja lido pelo Jerry, ele ficará quieto. Jerry foi demitido semanas depois dessa quinta-feira (não tenho nada a ver com isso). A sua passagem na empresa foi tão desastrosa que é omitida no seu perfil LinkedIn. Há pouco tempo, entrei em contato com ele. Perguntei se estava tudo bem e desejei-lhe ‘all the best’.

 


Foto: A Porta Nigra, construção romana do século III, um dos marcos de Tréveris, na Alemanha. Foto de maio de 2016.

 

Thursday, October 15, 2020

Cueca


A pandemia provocou uma certa aversão ao papel moeda. É cartão pra cá, cartão pra lá, celular pra cá, celular pra lá. A abundância de maquininhas de pagamento permitiu que qualquer comerciante possa oferecer opções de pagamento com ou sem contato. Imagino que muitos jovens tenham dispensado a boa e velha carteira. Documentos e dinheiro foram finalmente digitalizados.

Com o lançamento do PIX, tudo ficará ainda mais dinâmico, confiável e barato. Bom para todo mundo. Digo todo mundo mesmo. A enorme população desbancarizada do Brasil – cerca de 45 milhões - será grande beneficiária.

O projeto do PIX é um marco em si. Foi coordenado com competência pelo BACEN, que mostra sua determinação em fazer do nosso sistema financeiro uma referência mundial e aumentando a sua competição interna.

Entretanto, às vésperas deste marco importante, uma trágica contradição: mais um político é flagrado com dinheiro na cueca. Literalmente, dinheiro sujo. E o que dizer então da recém-criada nota de 200 reais? Enquanto que uma parte da gestão pública vai na direção certa, uma outra continua no mau caminho.

As transferências diretas de dinheiro - TED, DOC, boleto e cartões - deixam rastro, assim como o PIX. Bandidos e corruptos continuarão precisando de papel moeda para acobertar suas tenebrosas transações.

A digitalização do dinheiro dificulta a vida da criminalidade. Não é porque alguém tenha pago coisas caras com papel moeda que seja corrupto, mas a gente vai ficar cada vez mais desconfiado.

Em 2017, elogiei a Índia pela substituição repentina do seu dinheiro. Os criminosos tiveram muito trabalho, mas a ousadia acabou prejudicando bastante a maioria humilde do país de quase 1,4 bilhão de habitantes. O caso da Índia não pode ser ‘copiado e colado’. Pelo menos, eles tentaram. Aqui no Brasil, o crime e a corrupção continuam conquistando terreno.

Se não podemos conter a criminalidade, deveríamos fazer o máximo para dificultá-la. Jamais o contrário.

 

Foto: Final de semana em Tréveris (Alemanha), na primavera de 2016. A cidade é conhecida por suas ruínas romanas e por ter sido berço de Marx. Na foto, uma tomada a partir da praça central.

 

Leitura complementar:

Lavagem – Post de 2017


 

Monday, July 18, 2016

"No limits"

A última passagem por São Paulo rendeu duas multas. Depois de algum tempo fora, esqueci-me do rodízio e também não percebi os novos limites de velocidade. Paciência!

Dirigir devagar dentro do perímetro urbano é razoável. É uma tendência mundial. Não é razoável ter tamanha diversidade de limites, 30 km/h, 40, 50, 60, 70, etc, estabelecidos ao gosto da burocracia. Imaginem só a economia que poderíamos fazer com menos sinalização!

Na Bélgica, onde também se anda devagar, usa-se o princípio da exceção. Há uma regra conhecida por todos e só as exceções são indicadas. Ou seja, na falta de sinalização, vale o limite de 50 km/h dentro da cidade. Já na autoestrada, o limite é de 120 km/h. Só há placas para sinalizar as exceções, como naqueles trechos próximos às obras.

Falando francamente, só descobri tudo isso há poucos meses. Pensei que a ausência de placas nas estradas significasse “no limits”, algo tipo “Autobahn”. Apesar do mal entendido, não levei nenhuma multa.


As duas multas são fatos pitorescos. Tem coisa muito mais grave. Desde que saí do Brasil pela primeira vez, em 2007, o aumento de preços tem sido constante. Na semana passada, passei por uma situação boba, um pouco constrangedora para mim e que ilustra a tal inflação.

Andava pelas ruas de SP bem à vontade, sem celular e sem documentos. A ideia era passar no supermercado para comprar meia dúzia de itens. Levei uma nota de 50 reais na expectativa de gastar uns 20 e voltar com troco. Vocês devem estar imaginando o que aconteceu. Se não foi a minha primeira vez, não me lembro de outras ocasiões.  Quando percebi que a conta passaria dos 50 reais, tive que pedir para o caixa estornar dois artigos. Vexame :(



Foto: A fachada mais conhecida de Vannes, Bretanha, com o famoso casal esculpido em pedra por volta do século XVI.

Sunday, January 31, 2016

Maioria

O Zika chegou por aqui. Não o vírus em si, mas o noticiário, que tem dado mais atenção à doença, que tanto prolifera nas repúblicas bananeiras. De fato, o Brasil tem aparecido em dois tipos de notícias: as que falam do baixo crescimento mundial e aquelas sobre a crise do Zika. O Brasil decididamente tem um impacto relevante nesse mundo!

As notícias predominantes ainda giram em torno da questão dos refugiados e das medidas contra o terrorismo. Na última semana, a ministra da Justiça da França pediu demissão por isso. Até a poderosa Angela Merkel, personalidade do ano de 2015, pode ver a sua base de apoio ruir por conta do mesmo assunto.

O tema racha a sociedade europeia. Tomemos, por exemplo, os eventos de Colônia da noite de 31 de dezembro. Para quem não se lembra, um bando de imigrantes do Maghreb tomou conta da praça central da cidade. Centenas de mulheres que passaram por lá foram agredidas sexualmente.

Apesar da gravidade desse crime coletivo, o mundo só soube dele alguns dias depois. O sistema tentou abafá-lo. Polícia, prefeitura e imprensa, todos estavam preocupados com a não estigmatização dos agressores. Como se diz na França, queriam evitar o “amálgama”. A preocupação pode ser nobre, mas e as vítimas?

Uma grande parte da esquerda é extremamente zelosa com os direitos humanos dos bandidos. Isso acontece em todo o mundo. Diante dos fatos e da tolerância dos socialistas eleitos, insurge-se a extrema direita com suas ideias radicais. No debate ampliado pelas mídias sociais, ficamos com a impressão de que não existe solução intermediária entre não fazer nada e a criminalização generalizada dos imigrantes.

O governo da França, por exemplo, optou por um caminho mais duro. Prorrogou o estado de emergência e tenta adaptar-se aos novos desafios, modernizando as leis, reforçando a inteligência e mantendo a vigília.

Hollande e Valls estão certos. Ao invés de ficarem presos às ortodoxias do partido, compreendem que esse quadro mais complexo exige adaptação. São chamados de reacionários pelos colegas de esquerda e, de bananas pela extrema direita.

Ladram os cães da esquerda e da direita, enquanto a maioria permanece silenciosa. O exercício do poder parece ser mesmo solitário.



Foto: Última tomada do castelo Champ de Bataille com seus incríveis jardins. O conjunto foi restaurado completamente. O seu interior é uma galeria de arte com bom acervo, mas com pouca relação com a história do castelo.

Thursday, January 14, 2016

Fábula

Nas minhas últimas viagens pela Europa, entrou em cena o quase esquecido passaporte. O sonho das fronteiras livres já era. Com os controles de identidade e de bagagens, as viagens de trem perderam um pouco da praticidade habitual e do seu charme.

Na França, a discussão mais quente do momento é sobre a retirada da nacionalidade francesa dos indivíduos com dupla-nacionalidade envolvidos com o terrorismo. Parece bobagem, mas é algo que racha o Governo e, de certa forma, toda a nação.

Dividida mesmo está a Alemanha. Os eventos recentes de Colônia colocam lenha na fogueira da discussão sobre os refugiados e imigrantes. Apesar dos esforços da Angela Merkel para promover a nação acolhedora, o sentimento anti-islâmico só aumenta.

Nesse clima tenso, lembrou-se do primeiro aniversário do atentado à redação do Charlie Hebdo. O jornalzinho satírico estava quase falido ao final de 2014. Graças à visibilidade pós-atentado, as vendas em banca foram multiplicadas por 5 e as assinaturas, por 18. O jornal está com um dinheirão em caixa.

Tudo isso poderia ser uma justa compensação para a heroica equipe do Charlie. Infelizmente, as coisas são bem mais complexas. O humor do jornal é para poucos - humor negro e politicamente incorreto. Muitos milhares de novos leitores manisfestaram seu apoio à liberdade de expressão contribuindo com o tabloide, mesmo sem concordar com o seu conteúdo.

Nesta fábula pós-moderna, os jornalistas sob constante ameaça viram seus cofres encherem da mesma forma que os protestos, as críticas e as ações judiciais. A equipe está exausta e com saudades dos tempos de dureza.



Foto: Nas férias de verão, passei pelo Château du Champ de Bataille (Normandia).

Sunday, September 27, 2015

Diesel



Assim como na minha primeira expatriação, optei  por um carro movido a óleo diesel, algo muito comum por aqui. É bem prático rodar mil quilômetros sem precisar parar num posto. Nas últimas férias, por exemplo, rodei quatro mil. Imaginem se tivesse um tanquinho para 50 litros de gasolina?

Alguns especialistas afirmam que o escândalo Volkswagen é o canto do cisne dos motores a diesel em carros de passeio. Ótimo, que o meu próximo carro seja elétrico ou híbrido!

Outros especialistas mais radicais afirmam que não é uma questão de modo de propulsão, mas o veículo de uso privativo estaria com seus dias contados. O futuro reside no compartilhamento do automóvel em complemento aos transportes públicos. Ave Uber!

Diesel lembra outras coisas. Da marca italiana, que já esteve neste blog, em Crônica Toscana. E também da enfermeira Diesel, um impagável personagem do filme “Alta Ansiedade”  (Mel Brooks, 1977). Na descrição da Wikipedia, “dominadora e controladora do hospício, sendo que ela mesma é uma psicopata”. 

Sempre que cruzo com uma 'alemoa' mandona, carinhoso termo usado no Sul do Brasil, lembro-me da enfermeira Diesel.

Nesses últimos dias, tenho associado Angela Merkel ao personagem.  Graças à sua competência, é claro, tem atropelado o resto da Europa, impondo a vontade da Alemanha, sem dúvidas, o motor econômico do continente.

Na crise dos refugiados, a Alemanha impôs a ideia de cotas para os países da União. Quem não queria receber ninguém ficou contrariado. Quem até estava aberto à proposta, pareceu apenas fazê-lo por sugestão da Alemanha. Enfim, é por essas e outras que a queda de um gigante industrial da Alemanha agrada muita gente.   




Foto: Gordes, na Provence. Julho é mês de bater ponto na Provence para visitar os campos de lavanda, entre outras atividades. Pela terceira vez, paradinha em Gordes.

Tuesday, September 22, 2015

Volks

Os executivos da Volkswagen confessaram sua culpa num dos maiores escândalos de todos os tempos da indústria automobilística. São milhões de carros envolvidos, podendo acarretar numa multa bilionária à montadora alemã.

Imaginem vocês se a Volkswagen fosse gerida pelo PT. Claro, eles negariam tudo até o fim. Vejamos os depoimentos dos executivos da montadora:

Ludwig Ignatius, famoso ex-presidente da montadora declarou: “Isso não significa nada”. 

Joseph Genuine, executivo aposentado do grupo, disse que tudo isso é uma perseguição da mídia à montadora, afirmando que todas as outras montadoras também trapaceiam. 

Ruy Falke, chefe das comunicações da VW, foi mais direto, acusando o antigo presidente da casa, Ferdinand Heinrich Cardosen. Segundo Falke, o analista que desenvolveu o software para trapacear os testes de emissões foi contratado naquela gestão.

Outro executivo da montadora, Ludwig Merkadanten, responsável pela P&D, afirma com certeza absoluta: “Foi apenas um bug”.

Ciente de que o caso deve escalar até a Suprema Corte, Richard Lewandowski, jurista e presidente do Clube dos Amigos da VW, menospreza a ameaça à montadora. Argumenta: “A teoria do domínio do fato, criada pelos nobres conterrâneos Hans Welzel e Claus Roxin, não pode ser aplicada nesse caso”. Ainda segundo Lewandowski, o analista que desenvolveu o software é o único culpado.

Johann Vaccarius, ex-diretor financeiro do grupo, esnoba a provável multa de 18 bilhões dólares. Está pronto para convidar todos aqueles que possuam um automóvel da marca para pagar uma fração dessa quantia.


Foto: A vista do Museu da Confluência, em Lyon.

Saturday, September 5, 2015

Cuspindo pra cima

Acabaram-se as férias. A volta à labuta tem sido árdua, especialmente para os líderes europeus. O velho assunto dos refugiados virou uma crise internacional.

Puderam ignorar os milhares de mortos na tentativa de cruzar o Mediterrâneo, a superlotação da infraestrutura de acolha e os inúmeros acampamentos clandestinos espalhados pelo continente. Porém, a recente desintegração da Síria e do Iraque entornou o caldo.

As imagens dos mortos nas praias turcas e da multidão atravessando a Hungria a pé são chocantes. Não podemos ignorá-los. O assunto é polêmico, mas a causa humanitária precede o blá-blá-blá político.

Se existe uma expressão, que representa bem o que os líderes mundiais fizeram diante da crise síria ou da ascensão do Estado Islâmico é cuspir para cima. Esqueceram que o Oriente Médio é logo ali. Dá para caminhar da Síria até a Alemanha!

Enquanto os líderes fizerem cálculos políticos, a situação vai perdurar. Qualquer ação terá, num primeiro momento, um preço a pagar, ou seja, um custo eleitoral. Cada um deles deveria perguntar-se sobre a sua real motivação: buscar uma reeleição ou fazer a coisa certa.

Pelo que tenho visto, diante de tamanha crise humanitária, até mesmo alguns dos mais avessos aos refugiados estão comovidos. Há milhares de voluntários mobilizando-se para facilitar a vida dos migrantes, na sua longa caminhada do Levante ao Ocidente. Quero crer que o povo saberá reconhecer os líderes realmente dispostos a trabalhar para resolver o problema.


Post sobre a crise síria (2013)
Damasco
Damasco azedo

Post sobre os refugiados (2015)


Foto: Em Paris, no Jardim de Luxemburgo, no final do generoso inverno de 2015.

Friday, June 22, 2012

Euro 2012

Pelo bem do esporte, nos torneios europeus, é melhor se evitar quaisquer metáforas históricas ou abstrações que fujam da prática desportiva. Depois de tanto sangue derramado, nada como a competição saudável para confraternizar e semear a paz.

A imprensa europeia costuma resistir às piadas fáceis nesses tempos de Euro 2012 - a Copa do Mundo sem o Brasil e a Argentina. Ou melhor, resistia. A partida desta noite (quartas de final) entre Grécia e Alemanha está tirando a imprensa da linha.

As graves circunstâncias econômicas que abalam o continente opõem claramente os dois países. Dizem por aí: “Se a Alemanha quer tirar a Grécia do Euro, a Grécia pode tirar a Alemanha da Euro”.

Para um país economicamente arrasado, a partida desta noite é simbólica. Um comentarista grego prefere lembrar a Batalha de Creta (1941). Os nazistas tomaram a ilha grega, mas com o custo de mais de 3200 mortos. O futebol grego não é grande coisa, mas com este espírito heroico, o jogo promete.

Estou acompanhando a Euro 2012 na Europa, onde os jogos são transmitidos à noite. Nesta semana, estive num importante evento de informática. O coquetel / jantar de abertura foi simultâneo às partidas França X Suécia e Inglaterra X Ucrânia.

Alguém já disse que o europeu não é tão ligado no futebol quanto o brasileiro? A organização do evento trouxe duas TVs de grande formato, que ficaram em dois cantos do imenso salão. Quando os jogos começaram, metade do público dividiu-se entre ambos.

Entre tantas nacionalidades, inclusive coadjuvantes ucranianos e suecos, como era de se esperar, os ingleses foram os mais ruidosos. Não só torciam pela Inglaterra, como se manifestavam contra a França, mesmo estando em Paris. Os franceses estavam excessivamente intimidados pela derrota perante a medíocre Suécia. O Le Monde diz tudo: “La débâcle de Kiev”.

Aproveitei boa parte do jogo para comer e conversar com uma panelinha de brasileiros da Brasscom e Softex, que promoviam a nossa informática aqui na Europa. Mais comia do que conversava. Afinal, eu fui lá para comer, conversar ou assistir ao jogo?


Foto: Centro de Chicago.

Sunday, November 27, 2011

Alemanha contra rapa

Conforme escrito no último post, Portugal, Itália, Grécia e Espanha (PIGS) continuam em maus lençóis, e a Alemanha é o centro das atenções.

Muito provavelmente, Angela Merkel empurraria a questão do Euro com a barriga, não fosse a punição imposta pelo mercado. Ao encontrar os primeiros percalços na emissão dos seus próprios títulos, a poderosa Alemanha encontra-se tão fragilizada quanto seus vizinhos. Enfim, os alemães começam a perceber que estão no mesmo barco. Até a Economist usou a surrada metáfora da orquestra do Titanic.

O interessante é a inversão. De uma hora para outra, os PIGS viraram vítimas e a disciplinada Alemanha é vista como grande vilã. Apesar da irresponsabilidade fiscal dos PIGS, a forma de atuação do Banco Central Europeu – imposta pela Alemanha – coloca todo continente em risco. A Alemanha não pode mais insistir na punição dos países gastadores sem correr riscos.

Os alemães estão contrariados. Para eles, as cigarras se deram bem e as formigas dançaram. Antes dos dominós começarem a cair, as economias europeias já estavam estagnadas, enquanto que a Alemanha estava em melhor forma. Independentemente de quaisquer outros fatores, a origem de todos os males é a própria moeda única, que ameaça formigas e cigarras. Restarão apenas alguns pulgões.


Desde o começo da crise, os políticos europeus aproveitavam cada oportunidade para culpar o mercado financeiro. Diziam que a Europa não se inclinaria aos especuladores. Com o tempo, o discurso foi amenizado. O mercado, esta entidade culpada de tantos males, permitiu as operações para salvar a Grécia, amenizar a situação da Espanha e ainda foi o único a “peitar” a Alemanha. Se há algum pingo de sensatez nesta história, está no famigerado mercado.


Alemanha contra todos. Alguém já viu isso antes? Seria uma mera circunstância econômica ou fruto da mesma sequência histórica que levou aos conflitos do passado, das diferenças entre as perspectivas católica e protestante, de Roma contra os povos germânicos, etc. Para pensar.


Foto: Uma outra tomada da charmosa Saint-Martin-de-Ré.

Saturday, November 19, 2011

O dono da bola da vez

Cansado da crise europeia? Eu também. Revendo meu próprio blog, percebi que o primeiro post sobre a crise grega foi de março de 2010. Àquela época, já se falava do possível efeito dominó, iniciado na Grécia e demais "PIGS".

Quando escrevi aquele post, ainda morava na Europa, onde o assunto já dominava o noticiário. Confesso que acreditava numa certa solidariedade ao povo grego, numa preocupação em se evitar a desintegração social no coração da Europa. Hoje, tenho certeza absoluta de que a dupla Merkozy só queria livrar a cara e salvar seus bancos.

De fato, caminhamos para o pior dos cenários. Lá se vão dois anos sem crescimento, dois anos de sofrimento para os gregos e a crise está apenas começando. A economia italiana está em cheque e todos pagam altas taxas de juros para rolar suas dívidas. Até a França, detentora da nota máxima AAA, paga cada vez mais juros.

Até pouco tempo, a discussão maior era se a Grécia deveria dar o calote ou não. Agora, com economias bem mais significativas em jogo, a Alemanha está no centro do debate.

O mundo clama para que o Banco Central Europeu tenha uma atuação menos amarrada, injetando mais dinheiro na Economia e resgatando os países em dificuldade, mesmo com o risco inflacionário. A Alemanha, que emprestou a solidez do Marco ao Euro e tem uma trágica memória neste terreno, é radicalmente contra.

Vocês podem reparar no noticiário recente, as atenções viraram para a Alemanha. Apesar da sua virtude e disciplina, ela terá que ser solidária com seus vizinhos vagabundos, que ainda juntam dinheiro para comprar Mercedes.

Dois artigos:
The German problem
O Decálogo da Crise Europeia


Foto: Passeando por Saint-Martin-de-Ré, principal núcleo da Île de Ré. As casas podem parecer humildes, mas valem muito. A Ilha é sempre citada pelos críticos do Imposto sobre Fortuna. A valorização imobiliária transformou os seus antigos habitantes em milionários. O problema é que eles não tinham caixa para pagar o imposto. A saída foi vender e se mudar. Justo?

Sunday, June 19, 2011

Chiropa

Excluir a Grécia da Eurolândia era o cenário a se evitar. Temia-se uma convulsão social, a implosão de um país no seio da Europa e a virtual contaminação do continente, uma cesta cheia de frutos podres. Em algum momento, pensou-se que, ao invés de separar os podres, talvez fosse mais fácil separar os bons. Engano.

A Alemanha não pode mais sair do Euro. Mesmo com a economia mais saudável, seu superávit é feito em cima dos demais países europeus. Se tivesse moeda própria, um novo Marco, sua valorização acabaria com a competitividade do país. A opção é insustentável.

Já os gregos estão protestando de forma cada vez mais intensa. Se as coisas continuarem assim, todo o esforço europeu terá sido em vão, pois o caos se aproxima, com ou sem Euro, com ou sem Dracma.

Enquanto Angela Merkel hesitava, Sarkozy sempre foi claro. Quis salvar a Grécia para privilegiar seus amigos e financiadores de campanha, que fazem muito dinheiro por lá: Banqueiros e fabricantes de armas. O bom senso prevaleceu, Merkel e Sarkozy flexibilizaram as suas posições para fazer um novo pacotão de auxílio.

No final das contas, quem salva a Grécia, Portugal e Irlanda não é nem a Alemanha nem a França, mas ninguém menos do que a China, que vai comprar mais títulos europeus. Como a China tem muita bala, acredito que os problemas serão empurrados com a barriga.

Talvez a Europa faça como os EUA, que se amarrou com a economia chinesa, algo que alguns chamam de Chimérica. Agora é a vez da Chiropa. A China, que já tinha um marido bêbado e perdulário, arrumou um amante da mesma categoria. Não há consenso sobre onde isso vai parar. Xie Xie!


Foto: No centro de Baume-les-Messiers, na região da Franche-Comté.


PS: Artigo de Niall Ferguson, de 2005, para quem quiser ir mais longe: Our Currency, Your Problem

Saturday, June 4, 2011

Ainda sobre o Zidane da Economia

As notícias da Europa não têm graça. A Alemanha promete que vai abandonar a energia nuclear mais uma vez, a Grécia jura que agora vai apertar o cinto para valer e a Espanha diz que o seu pepino é confiável. Por essas e outras, ainda não tem assunto melhor do que DSK.

Na última semana, o que mais chamou a atenção foi o penthouse do Tribeca ocupado por DSK, considerado suntuoso demais para um socialista. Eu não estranharia tanto. Afinal, se o petista Palocci é o “Pelé da Economia”, DSK pode muito bem ser o Zidane da Economia, não é mesmo?

De fato, quem banca o DSK é a sua esposa, Anne Sinclair, que tem uma visão bastante arrojada sobre o matrimônio. Diz ela: “Enquanto ele me seduz e eu posso seduzi-lo, isso me basta”.

O escândalo DSK chacoalhou a sociedade francesa. Há uma série de debates sobre o machismo, o feminismo, o assédio, o papel da mulher, os vícios do poder, etc. Explodem as denúncias de assédio. Enfim, há males que vem para o bem. (Desculpem-me por esta conclusão tão profunda e original)

Nos últimos dias, trabalhei em Lyon e provoquei conversas sobre o tema com diversas pessoas. Os sentimentos de cada um são diferentes, do lamento à vergonha. Mas, ninguém é indiferente.

A próxima segunda-feira, quando se comemora o “dia-D”, será um momento crucial para o destino de DSK. Ele deve se apresentar à Justiça americana declarando-se inocente ou reconhecendo a culpa.

Em meio a tantas especulações filosóficas - no melhor estilo francês, a pérola da última quinzena foi o lançamento do novo modelo do Citroën DS4 (a pronúncia francesa é D-S-K-tre). O slogan da campanha: “O poder de dizer não”.


Para finalizar, uma historinha sobre DSK:

DSK chega ao FMI. No seu pescoço, próximo ao colarinho da camisa impecável, percebe-se um pedaço de calcinha. Passando pelos quadros da instituição e cumprimentando seus funcionários, o executivo escandaliza mais uma vez. Entre risos e indignação, a sede do FMI para. Todos falam da calcinha colada no pescoço do chefe. Uma hora depois, finalmente, um dos seus assessores mais próximos o alerta: "O Sr. está com um pedaço de calcinha no seu pescoço". DSK responde: "Não liga, é só um emplastro. Estou tentando parar".


Foto: A última tomada de Annecy, na Savóia.