Monday, December 21, 2009

Vinum Nostrum

No mundo do vinho francês, há uma grande pressão para a adoção da agricultura orgânica, evitando-se as peripécias bioquímicas, que fazem verdadeiros milagres, só comparáveis àqueles do marketing.

Como citei há meses,‭ ‬trapacear na produção de vinho dá cadeia.‭ A‬pesar de toda fiscalização,‭ ‬ainda há fraudes. Também há muitas coisas que não são ilegais, mas poderiam ser evitadas.‭ ‬A videira e o vinho recebem defensivos,‭ ‬fertilizantes,‭ ‬leveduras,‭ ‬bactérias,‭ ‬enxofre,‭ ‬acidulantes e ‭açúcar.‬ ‭A adição de tantas substâncias estranhas nega a própria essência do vinho francês, a cultura do "terroir". ‬Enfim,‭ ‬é muito espaço para criatividade. A indústria do vinho percebeu os abusos e está se ajustando.‭ ‬Melhor assim.

O vinho orgânico ainda é raro.‭ ‬Nessas feiras de vinhos tão comuns na França,‭ ‬pude encontrar alguns produtores.‭ ‬Eles confirmam o desafio de se seguir a cartilha do orgânico,‭ ‬mas o esforço é recompensado.‭ P‬roduz-se menos,‭ porém‬ com mais qualidade. No lançamento do Beaujolais Nouveau 2009, um produtor quase me convenceu. Após meia hora de conversa e muita degustação, eu acabei levando uns seis litros de suco de uva.

No Le Monde,‭ ‬li um artigo sobre um produtor da Borgonha que usa apenas cavalos na sua fazenda.‭ ‬Fazer uma máquina motorizada passear pelos vinhedos seria um crime,‭ ‬segundo ele.‭ ‬No seu site,‭ ‬há diversos equipamentos para videiras e cavalos. Exagero? Talvez, mas simboliza este movimento para um vinho mais artesanal.

Alguns vinicultores querem ir mais longe,‭ ‬incorporando o conceito de sustentabilidade,‭ ‬isto é,‭ ‬a plena responsabilidade com o meio ambiente e a sociedade em toda a cadeia do vinho, das videiras à distribuição do produto.‭ ‬Nada contra‭!

Se tudo isso é muito novo,‭ ‬vale lembrar que foi justamente a vinicultura que encontrou uma solução orgânica para uma das pragas mais devastadoras da história,‭ ‬a Filoxera. Qualquer pessoa que tenha feito pelo menos um curso de vinho conhece o assunto.‭

Filoxera é um pulgão de origem norte-americana que destruiu grande parte dos vinhedos do mundo em meados do século XIX.‭ ‬Combateram a praga com todos os inseticidas possíveis sem quaisquer resultados.‭ ‬A economia francesa sucumbiu. Os vinhedos mais prestigiados do mundo definharam. Até hoje não existe defensivo agrícola para a Filoxera.‭

A solução encontrada para salvar o vinho foi puramente empírica. A sua base científica seria publicada alguns anos mais tarde: A Teoria da Evolução de Darwin. Observou-se que as uvas americanas resistiam à Filoxera.‭ ‬Por que‭? ‬Como o inseto era natural da região,‭ ‬a convivência dos dois, insetos e vinhas, promoveu a chamada seleção natural.‭ ‬Ou seja,‭ ‬num passado muito remoto,‭ ‬havia videiras mais ou menos resistentes ao inseto.‭ ‬As menos resistentes foram extintas,‭ ‬as mais resistentes sobreviveram e se multiplicaram.‭ N‬o decorrer do tempo,‭ ‬os insetos foram selecionados pela capacidade de se alimentar das videiras; e essas pelos seus mecanismos de defesa.‭

Quando a Filoxera chegou acidentalmente à Europa, encontrou videiras que não passaram por esse longo processo, logo, sem defesas. Por isso, murcharam até morrer. ‭Como a seleção natural pode ter levado muitos séculos e não se conhecia a manipulação genética, ‬a única solução possível foi replantar as uvas americanas em quase todo o mundo.‭ ‬Feriu profundamente o orgulho dos franceses. Até hoje, toda videira francesa é plantada sobre uma americana. Solução 100% eficaz e natural.

In vino veritas: Charles Darwin é o verdadeiro Papai Noel.

Boas festas, um ótimo 2010 e saúde!



Foto: O Château de Suze-la-Rousse e as suas videiras. O castelo da Drôme (entre Lyon e a Provence) é sede da Universidade do Vinho.


Sunday, December 20, 2009

Cop15

Sarkô voltou de Copenhagen ainda menor. A imprensa local está chamando o Cop15 de G2, criticando o papel marginal da Europa no encontro. Na prática, todo mundo perdeu. E o que importa não é a classe política, mas o planeta. A nossa Terra. Afinal, como diz o Monde, não temos um "Planeta B".

Teremos duas reuniões para buscar um novo acordo, Alemanha e México. Até lá, o mundo não vai acabar nem ficar mais quente, pois independentemente da classe política, a sociedade está cada vez mais vigilante e atuante. Há uma grande mobilização planetária para a redução do consumo de energia, para a energia limpa, para a reciclagem, etc.

Dá para fazer muita coisa sem depender dos nossos pequenos líderes, no âmbito das ONG, na esfera privada ou mesmo na pública, onde inúmeros políticos já aderiram à causa da sustentabilidade.

Embora a China e os Estados Unidos estejam em posições de confronto, isso não significa que as duas nações mais poderosas do planeta estejam paradas. Não é preciso comparar Obama com o seu antecessor. E a China, por sua vez, tem um programa gigantesco de remodelação da matriz energética, feito à sua maneira, mas melhor do que nada.

Enfim, 2010 está aí. Dificilmente a comédia de erros do Cop15 vai se repetir. Enquanto isso, façamos a nossa parte.


Foto: Em Lons-le-Saunier, a Rue du Commerce com suas famosas arcadas.

Wednesday, December 16, 2009

Bala perdida

Bala perdida na França. E não é a primeira vez! As circunstâncias não são exatamente as mesmas que encontramos nas ruas paulistas e cariocas. Foi durante a última temporada de caça aos javalis. Não é incomum que uma bala ou outra escape dos domínios onde a prática é autorizada. Bons tempos em que Asterix e Obelix os caçavam com recursos menos sofisticados.

Segundo estudos arqueológicos recentes, foi a supremacia da artilharia que proporcionou a vitória romana diante dos gauleses. Esqueçam a disciplina tática, capacidade de guerrear e o preparo físico. Os gauleses eram muito bons de briga e até bem equipados. Não foi à toa que resistiram tanto tempo!

Remexendo-se os esqueletos dos celtas e com o uso de tecnologia moderna, constatou-se que a eficácia da artilharia romana fez a diferença: Flechas muito poderosas, catapultas e balistas. Aproximadamente 90% dos corpos gauleses apresentam traços deixados por tais armas.

Há muito exagero na forma em que caracterizamos romanos, gauleses e mesmo os bárbaros. Alguns estereótipos talvez tenham finalidade didática, entretanto, as fronteiras geográficas, temporais e culturais das civilizações são muito mais tênues do que aprendemos na Escola.


Foto: Uma outra tomada do Château d'Arlay, com destaque para o seu jardim florido.

Saturday, December 12, 2009

Revista do cinema - S2/2009

Final de ano, hora da revista cinematográfica do segundo semestre de 2009. O campeão, o filme austríaco "A fita branca" já mereceu um post exclusivo em 7/11/09. O vencedor da Palma de Ouro é um filme de outra categoria, uma obra de arte. O resto é divertimento.

Entre as melhores diversões, finalmente posso destacar três filmes franceses. "Le concert" é uma excelente comédia em torno do Concerto para Violino de Tchaikovsky. Pena que o filme abusa do pastelão, poderia ter sido ainda melhor. Talvez seja exatamente por isso que caiu nas graças do público. A atriz Melanie Laurent (Inglorious basterds) faz dupla com o russo Alexei Guskov. Outro filme de temática russa, "L'affaire Farewell" conta uma história real de espionagem do fim da URSS. Destaque para uma dupla de atores ainda melhor: O excepcional Emir Kusturica e Guillaume Canet. Apesar das duas ótimas histórias, o melhor filme francês do ano foi "A l'origine", que conta como um malandro deu um golpe numa cidade inteira. Todos esses filmes chegarão ao Brasil daqui a alguns meses, mas num circuito muito reduzido. Recomendo os três.

Entre os americanos, apenas duas comédias bem diferentes: Os últimos filmes de Woody Allen e Quentin Tarantino. "Whatever works" é daqueles filmes de Woody Allen dos bons tempos. Até que enfim um bom intérprete para o papel de judeu neurótico de NY, Larry David, o lendário produtor de Seinfeld. Já o filme de Tarantino dispensa comentários, tamanha a sua repercussão.

Decepcionado com a nova criação de Jean-Pierre Jeunet (de "Amélie Poulain"), "Micmacs à tire-larigot". Apesar da presença do comediante mais popular da França (Danny Boon) e do melhor ator (André Dussollier), o filme é totalmente infantil. O mesmo Dussolier emprestou seu talento ao último filme de Alain Resnais, "Les herbes folles", que deixa a desejar.

*** Das weisse Band - AUT - Michael Haneke

** Whatever works - USA - Woody Allen
** A l'origine - FRA - Xavier Giannoli
** Le concert - FRA - Radu Mihaileanu
** Inglourious basterds - USA - Quentin Tarantino
** L'affaire Farewell - FRA - Christian Carion

* The reader - USA - Stephen Daldry
* The informant - USA - Steven Soderbergh
* Les herbes folles - FRA - Alain Resnais
* Micmacs à tire-larigot - FRA - Jean-Pierre Jeunet
* Le syndrome du Titanic - Jean Albert Lièvre/Nicolas Hulot
* Public enemies - USA - Michael Mann
* Bancs publics - FRA - Bruno Podalydès
* State of play - USA - Kevin Macdonald
* Ice age: Dawn of the dinosaurs - USA - Carlos Saldanha


Foto: Perto de Lons-le-Saunier (Franche-Comté), o Château d'Arlay. O castelo do século XVIII não é historicamente dos mais relevantes, mas o conjunto merece ser visitado. Jardins, parque e o centro de criação de aves de rapina são uma atração considerável.

Friday, December 11, 2009

Um post de merda

Se o Presidente pode falar merda em seu discurso, eu também posso fazer um post de merda! Ou melhor, sobre merda. Ainda melhor, sobre merde.

O francês é mais generoso com a merde do que o português com a merda. Se em ambos idiomas a palavra é considerada vulgar, no francês, merde é mais bem aceita. Mais incluída, talvez. Não só é usada no dia a dia, como possui uma ampla família de derivados, igualmente comuns. Vejam só os verbos:

Démerder: Se virar
Emmerder: Incomodar, aborrecer
Merder: Errar, estragar
Merdoyer: Variante de merder

Enfim, é muito difícil passar um dia sem utilizar algum dos derivados de merde. E eu já estou tão acostumado que nem liguei para o discurso do Lula. Aliás, palavrões combinam com ele.

Desde que foi eleito Presidente, Sarkô nunca pronunciou merde. Ele tem razões pessoais para evitar o vulgar vocábulo. Seu nome de origem húngara significa "na merda". Quelle merde!


Foto: O monumento a Rouget de Lisle em Lons-le-Saunier (Franche-Comté). Rouget é o autor da Marselhesa, que tem muito sangue, mas não tem merda.

Tuesday, December 8, 2009

Trem bão

Passando pelo Brasil, uma notícia chamou minha atenção: A licitação para o trem-bala Campinas-São Paulo-Rio está a caminho. Finalmente!

Como assíduo usuário de trens de alta velocidade, faço os seguintes comentários:

1 - Falam em 8 estações. Quero crer que as estações sejam usadas de forma alternada. Ou seja, alguns trens param em São José, outros em Taubaté, outros em Resende, mas nunca mais de duas paradas por viagem. O que adiantaria um super trem que viaja a 350 km/h fazendo tantas paradas? A viagem Lyon-Paris passa por muitas estações, mas o trem vai direto ou faz apenas uma parada. O custo de se acelerar ou desacelerar o gigante é enorme! Ainda no TGV, o trem desliga os motores a uns 50 km de Lyon: O resto da viagem é "na banguela".

2 - Falam em 2h de viagem. Considerando-se que a passagem do trem bala não será barata, pois a manutenção é caríssima, por que então abandonaríamos a ponte aérea? A opção Congonhas / Santos Dumont com meia hora de viagem e meia hora de espera no aeroporto ainda é bem melhor do que a alternativa Estação da Luz / Central do Brasil. A menos que o governo feche Congonhas em nome da sustentabilidade!

3 - O BNDES vai pagar a maior parte. Não tem como fugir disso. O investimento é pesadíssimo. Se vocês leram que a empresa que opera os trens franceses (SNCF) tem lucro, saibam que o investimento nas linhas férreas está em outra empresa (RFF), que possui dívidas monstruosas. A França sabe disso. Está consciente dos custos e dos benefícios de ter a maior malha ferroviária de alta-velocidade do mundo. A opção ferroviária é uma questão de Estado.
 

Foto: Saindo da Normandia, um passeio dominical em Lons-le-Saunier, cidade da Jura, região de Franche-Comté. O teatro mostrado na foto é uma das atrações da cidade natal de Rouget de Lisle, o autor da Marselhesa.

Monday, December 7, 2009

Home pit-stop 2

Depois do trágico acidente do vôo Rio-Paris, a Air France parece estar mais rigorosa com os aspectos de segurança. Em meio a tantas viagens, já enfrentei muitas horas de atrasos, conexões e malas perdidas. Entretanto, a experiência de um dia inteiro de atraso era nova para mim.

No vôo Paris-São Paulo, foi detectada uma pane no 777 quando sobrevoávamos Portugal. O piloto recebeu a instrução de voltar para Paris. A espera levou 24hs. Todos os demais vôos estavam lotados, não havia como redistribuir os passageiros.

O atraso de um dia pode atrapalhar muita gente. A grande maioria dos viajantes reagiu com calma absoluta. A única exceção foi uma francesa que subiu no palanque e começou a discursar contra tudo e contra todos. Como eu sei que a AF tem uma frota muito bem mantida e esse tipo de evento tem acontecido com mais frequência, concluo que eles apertaram seus critérios de segurança. Como compensação, recebi um pacote generoso de milhas e a seguinte explicação da companhia:
 
"Uma falha em alguns visores da cabine de comando foi detectada durante o vôo, situação esta que levou o Comandante de Bordo, em conformidade com as regras de segurança em vigor, a retornar ao aeroporto de Charles-de-Gaulle a fim de que pudéssemos efetuar as verificações técnicas. Com efeito, sua segurança é nossa maior prioridade. Vimo-nos, desta forma, na necessidade de adiar a partida de seu vôo para o dia seguinte."

 
Foto: O castelo renascentista de Fontaine-Henry é um dos mais antigos e importantes da Normandia. A aparência atual é fruto da reconstrução do século XVI e alguns ajustes mais recentes. A família Tilly e seus descendentes ocupam a propriedade há cerca de mil anos!

Saturday, December 5, 2009

Home pit-stop 1

Depois de uma ausência de quase duas semanas, espero retomar meus posts com mais regularidade. O motivo da interrupção foi uma passagem por São Paulo. Em poucos dias na cidade, peguei mais congestionamentos do que o ano inteiro em Lyon.

Como visitante, tenho feito grande parte dos meus deslocamentos de táxi. Ainda bem, pois indo pela faixa de ônibus, consigo salvar algumas boas horas. A última sexta-feira de novembro foi inesquecível. Fiz uma viagem Faria Lima-Berrini (trecho de 3km) em 90 minutos. Não foi pior por que eu abandonei o táxi e continuei caminhando. Sexta-feira à tarde com chuva e show do AC/DC só poderia dar nisso. Saudades da França!


Foto: Outra tomada das belíssimas falésias de Etretat.